segunda-feira, 29 de março de 2010

Sentença do Caso Nardoni: Uma Abordagem Técnica

Como juiz, professor de Direito e autor de um livro intitulado Manual de Sentença Criminal, começaram a abundar indagações sobre a sentença, obviamente, sobre aspectos técnicos dela. Para não ser  redundante, omisso sobre alguns pontos ou impreciso, por não estar sempre com cópia da decisão, resolvi promover um estudo simples sobre aquela decisão.
O inteiro teor da sentença pode ser achado em vários sites da Internet, mas tomarei por base esta do site da Globo, por ter o vídeo da leitura da sentença comprovando sua fidedignidade.
De logo, verificamos que a sentença, seguindo a tradição dos julgados de primeiro grau do Estado de São Paulo, não foi dotada de ementa. Sabendo que a sentença seria lida por milhares de leigos, poderia ter o prolator feito uso desse interessante expediente. No entanto, como não é requisito formal, em nada fica maculada a decisão.
O relatório da decisão foi impecável e dotado de todas as qualidades necessárias a essa fase. Num momento de excesso de zelo, talvez tivéssemos nos referido à data de decretação da preventiva e sua fundamentação, mas não é nada que tenha maior implicação.
Quando iniciamos a leitura da fundamentação, alguns podem pensar que esse não é o lugar para o juiz fundamentar os elementos da dosimetria e, por isso, cabe lembrarmos a existência de dois métodos de análise dos elementos da dosimetria: num deles, há o dispositivo da sentença condenando o réu nas penas do crime  in abstracto, ou seja, não dizendo explicitamente a quantidade de penas e, logo após, inicia-se a dosimetria e, no curso desta, promove-se a análise motivada dos elementos da dosimetria e a quantificação matemática; noutro método, o utilizado pelo prolator da sentença ora comentada, após a indicação que haverá condenação, faz-se a análise de todos os elementos da fixação da pena e os cálculos matemáticos para, somente após, afirmar-se da procedência, parcial ou total, da denúncia para, em seguida, afirmar do total da pena imposta ao delito ou, se mais de um, aos delitos.
Sem dúvida, um erro capaz de gera a nulidade da sentença foi o de não se preocupar o juiz prolator com a individualização da pena, não deixando clara a culpabilidade de cada um dos réus. Não entendemos como "individualização" referir-se à conduta dos réus de forma simultânea e, como se constata, vaga. Ademais, estarreceu-nos a transcrição, na sentença, de ensinamento do jurista e magistrado Guilherme Nucci, no qual ele já alerta dos perigos da mitigação da individualização da pena:
Quanto mais se cercear a atividade individualizadora do juiz na aplicação da pena, afastando a possibilidade de que analise a personalidade, a conduta social, os antecedentes, os motivos, enfim, os critérios que são subjetivos, em cada caso concreto, mais cresce a chance de padronização da pena, o que contraria, por natureza, o princípio constitucional da individualização da pena, aliás, cláusula pétrea (NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena, 2. ed., São Paulo: Ed. RT, 2007, p. 195).
Como se não bastasse esta nulidade insanável, presente na dosimetria de ambos os crimes (homicídio triplamente qualificado e fraude processual qualificada), começam a aparecer, neste ponto, outros problemas de grande monta, também capazes de levar à anulação do julgado.
O primeiro deles é que não deve ser utilizada fração nesta segunda fase de fixação e o magistrado referiu-se a “1/4”, não especificando quanto caberia para cada uma das novas, enquadradas por ele no art. 61, inciso II, alíneas "c" e "d", do Código Penal. Deveria ter sido especificado quanto de pena coube à agravante da alínea “c” e quanto para a alínea “d”.
En passant, deve ser dito que a jurisprudência e a doutrina consideram que as circunstâncias judiciais, as agravantes e atenuantes, devem ter gradação mais modesta, de 1/6, e para citar o mesmo autor e obra já conhecidos pelo magistrado prolator: “Temos defendido que cada agravante ou atenuante deve ser equivalente a um sexto da pena-base (...)” (NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit. p. 230). Isso é irrelevante neste caso, pois foram duas as agravantes que ensejaram o valor de 1/4, ou seja, praticamente cada uma teve o valor de 1/8.
O segundo, e mais grave, dos problemas da sentença foi o fato que o magistrado julgador chegou a majorar – como é normalmente chamado o acréscimo por uma causa especial de aumento de pena – em 1/3, devido à majorante do inciso V, do § 2º do art. 121/CP, e depois agrava a pena em 1/4 e em 1/6 (por ser o réu pai da vítima – art. 61, inciso II (e não “parágrafo segundo”, como afirmado na sentença), “e”, do CP) e retorna novamente à terceira fase, quando novamente majora a pena em 1/3, por conta da parte final do § 4º do art. 121/CP (vítima menor de 14 anos). No entanto, as majorantes somente devem incidir na terceira fase de fixação da pena e, depois de chegar-se àquela, não se pode retonar à segunda fase, seguindo a ordem preconizada no caput do art. 68/CP. No curso da sentença, após especificada a pena-base, da primeira fase, foi realizada providência da terceira fase, seguida de três da segunda fase (duas delas simultaneamente) e, ao final, foi novamente à terceira fase. Há grave deslocamento de uma providência da terceira fase e isto pode gerar prejuízo para os réus, diante da falta de observância pelo magistrado – ou pelo menos do fato de não ter motivado isto – a inobservância da regra do parágrafo único do art. 69/CP:
No concurso de causas de aumento ou de diminuição previstas na parte especial, pode o juiz limitar-se a um só aumento ou a uma só diminuição, prevalecendo, todavia, a causa que mais aumente ou diminua.
Outro fato interessante é que o juiz não procedeu a limitação da pena do homicídio em trinta anos nem a soma das penas. Sim, essa não é só obrigação do juiz das execuções penais, é dever, também, do sentenciante, quando há mais de um crime, pois é com esse somatório que serão levados em consideração os benefícios dos art. 44 e 77 do CP, incabíveis, in casu, por simples verificação das quantidades das penas privativas de liberdade.
Quanto à prisão preventiva dos réus, inobstante tenha sido questionada em vários tribunais e mantida, filiamo-nos à posição do professor Luiz Flávio Gomes, no artigo Caso Isabella: Prisão Midiática. A preocupação do magistrado em justificar o injustificável, do ponto de vista processual, propiciou que mais de 2/5 da fundamentação da sentença foi somente sobre a manutenção da preventiva.
Levando em consideração que a decisão dos jurados foi exatamente a condenação pretendida na denúncia, o prolator devia ter, nos cinco dias de júri, ou até antes, se preparado para não incorrer em erros tão primários de dosimetria como a não individualização dos crimes para cada um dos réus ou a incorreta aplicação das fases do sistema trifásico de dosimetria da pena.

2 comentários:

  1. Meu caro,

    Publiquei texto no mesmo sentido do seu estudo. Concordo plenamente com o exposto e o cumprimento pela serenidade da análise, nem sempre contida nas minhas manifestações acadêmicas.

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  2. Parabéns Euler pelo comentário. De forma bem didática você explicitou a questão, dando um ótimo caso para o estudo. Também serve para que possamos rever as nossas questões técnicas, às vezes ultrapassadas em razão da atuação cotidiana, mas distante dos livros, da boa doutrina. Valeu pela contribuícão amigo Euler e não vá passar muito tempo sem postar.

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