quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Alguns Comentários sobre o Estatuto do Desarmamento

(Publicado originalmente no Jornal Carta Forense, São Paulo, novembro/2007, p. 50)

A Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003, chamada de Estatuto do Desarmamento, trouxe várias mudanças com relação ao tratamento dos crimes derivados da posse, porte ou utilização de armas de fogo. Observa-se que ela tratou com mais severidade e de melhor explicitou algumas questões abordadas pela lei que até então disciplinava a matéria, a Lei 9.437, de 20 de fevereiro de 1997 – Lei de Armas de Fogo.

O art. 12 do estatuto mostra o cuidado em não sobre-onerar a pena daquele que, apesar de estar com arma de uso permitido em situação irregular, a mantém em sua residência ou trabalho, talvez demonstrando a idéia de facilitar sua autodefesa. Tal situação era corriqueira no interior, onde, muitas vezes, o réu de idade já avançada afirmava que recebera a arma se seu pai há mais de 30 anos e a mantinha apenas para sua própria proteção. Se não fosse a pena mais branda para este artigo, sequer poderia ele ser agraciado com a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95) e seria colocado em igual condição com aquele que é preso portando uma arma e, além desta, muitas más intenções.

Outro exemplo dessa melhor abordagem foi quanto à supressão ou adulteração de numeração ou sinal identificador de arma de fogo ou artefato. Na Lei 9.437/97, a questão era assim disciplinada:

Art. 10. [...]

§ 2° A pena é de reclusão de dois anos a quatro anos e multa [...].

§ 3° Nas mesmas penas do parágrafo anterior incorre quem:

I - suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato;

A Lei 10.826/03 não só explicita a conduta de suprimir ou alterar a marca ou numeração (art. 16, parágrafo único, I), mas também criminaliza a conduta de “portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado” (inc. IV do mesmo parágrafo).

O legislador, sem dúvida, levou em consideração a jurisprudência sobre o assunto, que consignava pacificamente que somente o responsável pela adulteração ou supressão seria punido e, mesmo que a arma em tais condições estivesse sendo portada ou possuída não haveria nenhum plus legal de reprovabilidade em relação ao porte ou posse em desconformidade com a regulamentação.

Muito difícil, quase impossível, é condenar alguém por haver suprimido uma numeração, pois há a necessidade de se encontrar prova de que foi ele o autor, como uma testemunha que visualizou o ato, o instrumento que o efetuou, a limalha resultante ou, ao menos, indícios que a arma tinha numeração antes quando chegou às suas mãos e, sem interrupção dessa posse, a perdeu.

Com o advento do Estatuto do Desarmamento, basta o porte, a posse, a aquisição, o transporte ou fornecimento da arma ou artefato de numeração adulterada ou suprimida para a tipificação do crime.

Outra questão normalmente não abordada é se a arma referida nesse inciso IV é somente a de uso proibido ou restrito ou pode ser também a de uso permitido. Veja-se que, por técnica legislativa, deveria o conteúdo de o parágrafo restringir-se aos limites traçados pelo caput do artigo. Entretanto, não nos parece correto este posicionamento. Inicialmente, observamos que a intenção da lei é dar uma reprovabilidade maior à posse ou porte de arma ou artefato adulterado, mesmo que se trate de arma de fogo de uso permitido e essa, para fins de pena, equipara-se à posse ou porte de arma de fogo de uso proibido ou restrito. Inclusive, este mesmo raciocínio é aplicável a outros incisos do mesmo parágrafo, pois não haveria lógica em punir mais rigorosamente a venda, entrega ou fornecimento de arma ou munição a menores apenas quando essa fosse de uso proibido ou restrito (inc. V).

Assim, nos pontos traçados, vê-se que o legislador realmente empenhou-se em bem ajustar as reprimendas à reprovabilidade da conduta, criminalizando ações que apresentam perigo concreto, apesar da atecnia de mantê-las como mero parágrafo de um artigo que trata apenas de armas de uso restrito ou proibido.

Apesar de merecedor daqueles elogios, não se importou com a tormentosa questão da arma desmuniciada e sem possibilidade de o sê-lo facilmente e, pior, da leitura do art. 14, vê-se que tipificou, como crime, a conduta de posse ou porte munição, sem estabelecer quantidades, espécies ou a necessidade de visar à alienação. A pena atribuída, ademais, não foi razoável (de dois a quatro anos de reclusão), tornando melhor o furto de um caminhão cheio de munição que ser encontrado com duas balas de calibre .22 numa gaveta velha.

Como já tivemos a oportunidade de expressar numa sentença, não há sentido na criminalização dessa conduta, pois não acreditamos que a atual Constituição Federal - inquestionavelmente garantista - recepcione a punição de crimes de perigo abstrato como pode ser caracterizado o crimes de posse de munição desarmada.

Apesar de ser um bom passo, o Estatuto do Desarmamento ainda tem um caminho de adaptações a percorrer para adaptar-se às reivindicações da sociedade da Constituição e do sentimento de justiça.