sábado, 24 de janeiro de 2009

Inquirição de Testemunhas e a Reforma do CPP

(Publicado originalmente no site Jus Navigandi, em 18/11/2008, Teresina-PI)

A recente reforma do Código de Processo Penal constituiu-se basicamente nas alterações que nele foram efetuadas por três leis: a Lei nº 11.689, de 09 de junho de 2008, que alterou o rito e outras questões relacionadas com o Tribunal do Júri; a Lei nº 11.690, de mesma data, que alterou elementos relacionados à prova processual, e, por fim; a Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008, que alterou questões ligadas à emendatio e mutatio libelli, alguns elementos da sentença e aos ritos ordinário e sumário.

A nova redação do art. 212, pela Lei nº 11.690/08, instituiu as perguntas diretas – não mais reperguntas – pelas partes às testemunhas, cabendo ao juiz estar atento para inadmitir aquelas que induzam a resposta, impertinentes ou repetidas.

Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.

Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.

Quanto a isso, não há nenhuma dúvida e é facilmente compreensível diante da literalidade da norma examinada e não há quem não admita ser um avanço em relação à legislação anterior.

Entretanto, essa interpretação literal gerou impasse na doutrina e alguns (a exemplo de NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 8. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 480) ainda afirmam que o juiz iniciaria a inquirição fazendo suas próprias perguntas. Esses afirmam que o magistrado é o destinatário da prova e a redação anterior também não explicitava que ele fazia perguntas. Quanto a esse último ponto, há ligeiro engano, e, para sua constatação, transcrevemos a redação anterior:

Art. 212. As perguntas das partes serão requeridas ao juiz, que as formulará à testemunha. O juiz não poderá recusar as perguntas da parte, salvo se não tiverem relação com o processo ou importarem repetição de outra já respondida (grifo nosso).

Se havia perguntas “das partes” é por se admitir a existência de perguntas de outrem e, certamente, não eram do porteiro do auditório ou do analista judiciário. Eram as perguntas do juiz.

Não temos dúvidas que a lei determina que, inicialmente, seja dada a palavra às partes, para perguntas diretas, cabendo ao juiz complementá-las. Essa metodologia será, certamente, difícil de ser assimilada, tanto pela acusação, como pela defesa, mas toda mudança cultural é árdua e enseja algum descontentamento.

A complementação referida pela lei, realizada pelo juiz, pode ocorrer tanto no caso das perguntas que deixam algo no ar e que tem consectários lógicos que não foram feitos, como no caso de perguntas que efetivamente não foram feitas e guardem correlação com o caso. No primeiro, pode – e deve – o juiz fazer de logo a complementação, como se fosse um aparte, a exemplo do caso que um promotor pergunta à vítima de um furto se a comunidade do local comenta que o réu é o ladrão e, diante da resposta positiva, o juiz intervém, indagando se esse comentário se deu antes ou depois dele aparecer em programa televisivo de grande densidade no local. No segundo caso, no seu momento correto, o magistrado faz perguntas após as partes, de quaisquer questões que ache úteis para o seu julgamento, tanto absolutório quanto condenatório – perguntar como agiu a vítima antes e durante a infração, provavelmente para robustecer o “comportamento da vítima” de que fala o art. 59 do CP não ensejando a concepção de prejulgamento condenatório.

Ainda, permanece praticamente intocada pela doutrina tradicional a intenção do art. 411, § 8º (primeira fase do rito do Tribunal do Júri), e do art. 536 (rito sumário), ambos do CPP, alterados pelas Leis nº 11.689/08 e nº 11.719/08, respectivamente, e o fato de não haver elemento similar no rito ordinário.

Art. 411, § 8º. A testemunha que comparecer será inquirida, independentemente da suspensão da audiência, observada em qualquer caso a ordem estabelecida no caput deste artigo.

Art. 536. A testemunha que comparecer será inquirida, independentemente da suspensão da audiência, observada em qualquer caso a ordem estabelecida no art. 531 deste Código.

Da dicção destas normas compreende-se que, mesmo que falte uma testemunha, serão inquiridas todas que comparecerem e, após isto, suspensa a audiência e designada a continuação apenas para a inquirição da(s) faltante(s), que, se foi(ram) intimada(s) e se omitiu(ram), será(ão) conduzida(s).

Aparente problema surge somente se a testemunha faltante for da acusação. A regra legal continuará aplicável, ou seja, todas as testemunhas que comparecerem inquiridas – mantida a ordem referida nos artigos, primeiro as de acusação que compareceram e, depois, as de defesa. Trata-se de uma hipótese legal (apenas para o rito sumário e o da primeira fase do júri) onde há possibilidade de inversão da ordem de oitiva de testemunhas, desde que, naquela audiência e na seguinte, seja atendida a ordem normal, com a inquirição das testemunhas de acusação e, somente após, da defesa, pois pode faltar uma de cada polo processual. Essa permissibilidade é somente naqueles ritos, que, pela pena menor dos crimes a ele submetidos (ver arts. 394, § 1º, II, e 538, ambos do CPP), no caso do sumário, e por ser a primeira fase mero juízo de admissibilidade da fase de plenário do Tribunal do Júri. Sendo o rito ordinário caracterizado pela maior amplitude de produção de provas e ampla defesa, a audiência será suspensa ao final da última testemunha de acusação e as testemunhas de defesa que compareceram ficarão intimadas para a continuação da audiência, quando será conduzida coercitivamente a testemunha faltante, caso tenha sido intimada e se omitido de comparecer em juízo.

Concordando este posicionamento, apenas há um único processualista penal (MENDONÇA, Andrey Borges de. Nova reforma do Código de Processo Penal: comentada artigo por artigo. São Paulo: Método, 2008. p. 307), mas certamente é a interpretação correta e qualquer outra derivaria para a conclusão de que os artigos nada dizem – e, conforme regra de hermenêutica, não há palavras desnecessárias na lei.

A referida reforma tanto consolidou práticas que já eram procedidas pelos magistrados, quando atentos ao texto constitucional, como trouxe inovações sem paradigmas e estas, certamente, trarão dúvidas e inconformismos até que se integrem definitivamente ao cotidiano forense.