domingo, 1 de junho de 2008

Crimes de Médio Potencial Ofensivo: Necessidade de Definição para Tratamento Diferenciado dos Acusados

(Publicado originalmente no Jornal Carta Forense, São Paulo, junho/2008, p. 44-45)

O mestre Paulo Rangel é autor de um conceito muito interessante e de basilar compreensão para o tema que pretendemos discutir. Ele nos ensina que, implicitamente, quando a Lei 9.099/95 definiu os crimes de pequeno potencial ofensivo (art. 61) como aqueles cuja pena máxima não ultrapasse um ano e, também, implicitamente, traçou os contornos dos “crimes de médio potencial ofensivo” com auxílio do seu art. 89. Ou seja, os crimes de pequeno potencial ofensivo seriam do âmbito de competência dos Juizados Especiais Criminais e os de médio potencial ofensivo, apesar de continuarem sob a atenção da Justiça Comum, mas com a permissibilidade de aplicação do instituto da suspensão condicional do processo.

Anos mais tarde, a Lei 10.259/01, Lei dos Juizados Especiais Federais, afirmou que crimes de menor potencial ofensivo, no âmbito da Justiça Federal, seriam aqueles cuja pena não ultrapassasse dois anos. Logo, a comunidade jurídica questionou se não houvera a elevação implícita do conceito de pequeno potencial ofensivo, sob o argumento de que, caso assim não se entendesse, aquela lei estaria afrontando o princípio da igualdade, por prever fórmulas diferentes para casos iguais: um exemplo que bem explica isso é a prática de desacato contra um juiz federal e um similar contra um juiz estadual, onde o autor daquele teria a indiscutível favorabilidade de ser processado sob o rito sumaríssimo, enquanto que o autor desse crime teria que se contentar com o rito sumário. O resultado foi óbvio, pois a jurisprudência pátria abraçou o entendimento pela alteração implícita do conceito de menor potencial ofensivo da Lei 9.099/95 e estimulou que o Legislativo desencadeasse alteração que, através da Lei 11.313/06, alterou literalmente o conteúdo do art. 61 da Lei 9.099/95 para que tivesse o mesmo sentido da 10.259/01 e, inclusive, afirmando sua aplicação independente da especialidade do rito.

Esse é o cenário atual e, apesar de sanadas as maiores divergências, ainda resta uma questão em aberto: a definição implícita de crime de médio potencial ofensivo, aqueles não são de pequeno potencial e cuja pena mínima em abstrato não ultrapassam um ano, teve este limite alterado para dois anos?

Já algum tempo, a euforia tomou vários doutrinadores quando essa construção conseguiu sua primeira decisão unânime favorável no Superior Tribunal de Justiça (5ª Turma), na relatoria do Min. Félix Fisher:

A Lei n. 10.259/2001, ao definir as infrações penais de menor potencial ofensivo, estabeleceu o limite de dois anos para a pena mínima [claro equívoco, deveria ser “máxima”, anotação nossa] cominada. Daí que o art. 61 da Lei n. 9.099/1995 foi derrogado, sendo o limite de um ano alterado para dois, devendo tal mudança ser acrescentada à parte final da Súm. N. 243 desta Corte, visto que as alterações da lei penal que são benéficas para os réus devem retroagir. A Turma deu provimento ao recurso para afastar o limite de um ano e estabelecer o de dois anos para a concessão do benefício da suspensão condicional do processo. RHC 12.033-MS, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 13/08/2002 (Site do STJ).

Entretanto, foi a transcrita decisão um estranho engano, pois, menos de quatro meses depois, em 03.12.2002, os Embargos Declaratórios opostos daquela decisão (EDcl no RHC 12033-MS) foram julgados, também à unanimidade, procedentes para dar efeito modificativo ao julgado e entender que o advento da Lei 10.259/01 não atingiu o instituto da suspensão condicional do processo ou o art. 89 da Lei 9.099/95 – entendimento que predomina até hoje.

Ainda mais estranho que o dito efeito modificativo – que se constituiu na simples mudança de entendimento da Turma e não numa contradição – foi o calar das vozes da doutrina a respeito do tema. Não podemos entender que foi apenas por coincidência que o “um ano” que antes definia a pena máxima em abstrato para o crime de potencial ofensivo (art. 61 na redação original da Lei 9.099) foi utilizado para definir que, se a pena mínima em abstrato de um delito não o ultrapassasse, seria cabível a suspensão processo do art. 89.

Claramente há uma correlação lógica nesse ponto, inclusive para não subutilizarmos a suspensão condicional do processo já que vários dos crimes que permitiam sua aplicação agora não mais dela carecem, por estarem sujeitos ao rito sumaríssimo.

O legislador precisa entender – já que os tribunais não perseveraram nesse entendimento – que os crimes que seriam alcançados por uma reformulação no aumento da amplitude da suspensão condicional do processo para aqueles cuja pena mínima não ultrapasse dois anos iria separar o autor de um furto, mesmo qualificado, do autor de um roubo, o estelionatário do traficante, aquele que apenas porta uma arma de fogo do latrocida, etc. e a sociedade continuaria resguardada, pois é sabido sabe que o verdadeiro criminoso não pára no seu primeiro crime ou pratica apenas um furto qualificado ou um porte de arma e, por isso, com qualquer cumulação ou prática reiterada seriam objetivamente inaplicável a suspensão.

Não nos satisfaz a justificativa de que, por serem institutos diversos, um vinculado à pena máxima e outro à pena mínima, não seria aplicável o princípio da proporcionalidade, pois todo o sistema punitivo está (ou deveria estar) voltado para a solução do fenômeno criminal.

Ainda, como aprendizado de vida, talvez por conta de nossa crença cristã amparar-se num insondável Plano Divino, temos que não existem coincidências. Inclusive, é razoavelmente fácil fazer um estudo de como o legislador chegou à definição de um ano para o art. 89, se era ou não correlacionado com a definição do art. 61 da mesma Lei dos Juizados Especiais. Não tomamos tal providência, por não termos a compreensão de que a vontade do legislador se confunda com a vontade do “ente” que se constitui a lei, quando promulgada e integrada ao ordenamento jurídico.

Esse texto tem uma só pretensão: reacender o debate sobre questão jurídica de grande aplicação prática, destinada a resguardar direitos individuais e sociais – à medida que impede o “aprendizado” do criminoso de médio potencial ofensivo com os mestres do grande potencial e até da hediondez criminosa. O debate praticamente cessou por simples esquecimento, por estar extremamente ligado a uma questão que foi pacificamente acolhida – a competência do juizado – pela jurisprudência e pela lei, mas não se chegou a uma explicação que não derivada do argumento de autoridade – chamado certa vez de “alvará para não pensar” – da Súmula 243 do STJ, de 11/12/2000 e pub. no DJ 05.02.2001, que está regulando uma abordagem que não nasceu para regular e que não existia à época de sua concepção.