quarta-feira, 1 de dezembro de 2004

Os Princípios, a Efetividade e a Força dos Juízes

(Artigo publicado originalmente no Informativo da Associação dos Magistrados da Paraíba. João Pessoa, agosto/2004, p. 08)

Várias são as definições de princípios que permeiam o Direito e as diversas ciências, mas encontramos na filosofia de Descartes uma que nos satisfez imensamente: Princípios são “cada uma das proposições diretivas ou características a que se subordina o desenvolvimento de uma ciência”.

Para o campo jurídico, essa definição cai como uma luva, pois sobre a orientação dos princípios, se desenvolve o campo jurídico.

O nosso sistema normativo é um composto de princípios e regras. Essa interação é interessante à medida que os princípios, que têm alta generalidade, fecham possíveis brechas deixadas pelas regras, que têm sua expressão gráfica na lei. Não há que se questionar, assim, a normatividade dos princípios, sua coercitividade, que permite a derrubada de leis expressas que estejam em confronto, respeitada obviamente a hierarquia das normas, pois terá o princípio a mesma força da lei onde se encontra respaldado.

À época dos princípios implícitos, eles tinham a sua existência e, principalmente, sua força normativa questionadas, pois sua compreensão derivava da observação de tendências legais.

Para mim não há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as outras. (...) Para sustentar que os princípios gerais são normas, os argumentos são dois, e ambos válidos: antes de mais nada, se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, através de um procedimento de generalização sucessiva, não se vê por que não devam ser normas também eles: se abstraio da espécie animal obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a função para qual são extraídos e empregados é a mesma cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um caso. E com que finalidade são extraídos em caso de lacuna? Para regular um comportamento não-regulamentado: mas então servem ao mesmo escopo que servem as normas. E por que não deveriam ser normas? (BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 7. ed. Brasília: Unb, 1996, p. 159)

Os princípios são a base da doutrina dos chamados pós-positivitas. Eles consideram que o direito natural se encontra positivado, através dos princípios que estão na lei, de forma expressa ou implícita. Não podemos negar que a nossa Constituição Federal é um terreno fértil para o desenvolvimento dessa idéia, pois abraça uma grande variedade de princípios que passaram a ter força constitucional.

Os positivistas – preocupados com a insegurança decorrente de um sistema normativo altamente maleável à interpretação – estão aflitos e sabem que não há escapatória. Os princípios não estão somente integrando o ordenamento jurídico, mas o estão reconfigurando. Como efeito dessa tarefa, a doutrina tem denotado um crescimento do arbítrio judicial, permitido pela própria legislação, a exemplo do nosso novo Código Civil. Essa tendência não é apenas brasileira, é mundial e acreditamos ser decorrente de uma preocupação generalizada com a efetividade da prestação jurisdicional.

O Princípio da Efetividade prega que o processo realize eficientemente e tempestivamente o fim específico do processo, a tutela do direito material. Não basta que os magistrados findem com um processo, deliberando sobre a pretensão nele esboçada. É preciso que o detentor do direito material declarado. Carnelutti, há muito, asseverava que “sendo praticamente possível, o processo deve dar a quem tem um direito tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tem direito de obter”. A moderna concepção de efetividade insiste na necessidade de providências com as quais o titular do direito material sofra minimamente os efeitos do inadimplmento e nessa tentativa o processo tem sofrido mudanças legislativas. Visível a presença das diversas modalidades de tutelas de urgências nesse sentido, as alterações no sistema recursal e no pior dos algozes, o procedimento executório.

Esses poderes exigem uma contraprestação que os magistrados têm ciência desde os primeiros dias no exercício da função (ou seria melhor tratá-la por “celibato”?) é o comprometimento não com a lei, mas, acima dela, com a sociedade e, em última análise, com cada um dos jurisdicionados.

Dentre os elementos dessa aliança em prol do ideal de justiça, encontramos a segurança na decisão (qualidade) e a celeridade. Esses são valores diametralmente opostos, mas, sabendo que in medio stat virtus, cabe-nos equalizá-los para perseguir uma justiça efetiva, rápida e eficaz.

(...) o que se quer é um juiz consciente de seu papel e da repercussão social de seus atos, capaz de, mediante a interpretação dos textos das leis, criar Direito e fazer Justiça, tudo em nome da sociedade da qual também faz parte (BERBERI, Marco Antonio Lima. Os princípios na teoria do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 03.).

As responsabilidades do magistrado aumentam em proporção maior que os poderes que lhe são outorgados pela lei, ao passo que a própria sociedade demanda cada vez mais seus serviços. Portanto, não nos resta tempo para o ufanismo com o poder. Devemos revestir-nos com a couraça da dignidade e encarar esse poder que nos foi concedido tantos pelas normas quantos pelos princípios como uma arma na busca da concretização do mister, a pacificação social.

Da dignidade do juiz depende a dignidade do direito. O direito valerá, em um país e em um momento histórico determinados o que valem os juízes como homens. O dia em que os juízes tiverem medo, nenhum cidadão poderá dormir tranqüilo (COUTURE, Eduardo J. Introdução ao estudo do processo civil: discursos, ensaios e conferências. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Editora Líder, 2003, p. 57).


sábado, 17 de julho de 2004

Outro Controle do Judiciário

(Texto publicado originalmente no Jornal Correio daParaíba, 1º Caderno, Seção Opinião, em 17.07.2004)


O Poder Judiciário se afigura perante todos, sem dúvida, como meio de concretização do ideal de justiça. Quantas vezes não ouvimos, sempre quando algum direito está sob ameaça, ao menos na ótica de quem faz tal afirmação, a frase “vou colocar você na Justiça”. Não é ela necessariamente intimidadora, pois o justo permanece tranqüilo diante dela.

Entretanto, há a possibilidade do próprio Judiciário ser instrumento de opressão. O orador paraibano Alcides Carneiro já apregoava que "um mau juiz é o pior dos homens". Não é apenas uma mera hipótese a existência de maus juízes. Existem aqueles não vocacionados, como também existem maus presidentes, médicos, lixeiros e, em suma, são maus não por terem abraçado tais profissões, mas por serem maus humanos – opção de cada um, no livre arbítrio concedido por Deus.

Não raro, no cenário nacional e, infelizmente, estadual, descortina-se uma investigação ou condenação desses “bandidos togados”. Devemos atentar que, se tais casos estão aparecendo na mídia, está efetivamente ocorrendo alguma espécie de controle sobre eles, seja pelas Corregedorias de Justiça, Conselhos da Magistratura, Tribunais de Contas, Ministério Público, polícias e também das próprias partes dos processos judiciais, que contam com uma gama de procedimentos para corrigirem ou anularem as decisões erradas, injustas ou abusivas e moldam o proceder do próprio proceder do magistrado. Não podemos nos esquecer dos Tribunais de Contas, que também controlam o Judiciário, através de suas contas.

Com tanto controle, será que precisamos de outro "controle externo"? Sim, outro! Afinal, o Ministério Público, os Tribunais de Contas, as polícias e as partes já são totalmente externos à magistratura.

Acreditem, nós e os colegas com os quais conversamos não tememos esse outro controle. Tememos o uso político, o mau uso, repreendendo não os abusos, mas a independência ideológica do magistrado, que não deve ceder sequer à lei, que, por vezes, no caso concreto, se afigura como injusta.

De qualquer forma, mesmo sabendo da aceitação do controle externo da magistratura pelos representantes do povo e dos Estados, deputados e senadores, terão certeza os jurisdicionados que os magistrados continuarão altivos e coerentes com a lei e com a Constituição, pois, acreditem, quem procura a profissão de magistrado raramente o faz pela remuneração, mas, principalmente, pelo prazer de se aproximar um pouco do sentimento divido de realizar justiça.

sexta-feira, 1 de agosto de 2003

Considerações sobre o Crime de Omissão de Receita

(Publicado originalmente na Revista do FISCO-PB, agosto/2003, João Pessoa-PB, p. 12)

O crime cognominado pela doutrina e jurisprudência de Omissão está previsto no art. 2º, inciso II, da Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, que define os Crimes Contra a Ordem Tributária. Segundo essa norma, constitui crime “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.

Sem dúvida, tal delito é um dos mais praticados contra a ordem tributária. Ora, toda vez que o comerciante omite-se de emitir nota fiscal de saída da mercadoria, de faturar a saída dela, ele leva à crença de que tal produto ainda consta de seu estoque e, como não foi alienado para o consumidor final – que realmente paga pelo tributo, em especial pelo Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS – não haveria, portanto, o fato gerador da receita e, em decorrência, a obrigação de recolhimento. O crime só se consuma, pela sua própria redação, com a expiração do prazo legal para o recolhimento do tributo.

Quando constatada a omissão de receita, o comerciante infrator é autuado pelos fiscais e inicia-se procedimento que visa à inscrição daquela dívida apurada, com multas e juros legalmente previstos, para a execução fiscal (Lei nº 6.830/80) da certidão de dívida ativa, a CDA.

Uma forma eficaz de constatar o não-recolhimento dessa receita é o confronto entre o livro de estoque ou inventário e os materiais que efetivamente constam no lugar designado como estoque da firma comercial. Certamente, o livro conterá muito mais mercadorias do que contem o estoque físico.

Além do procedimento executório fiscal, onde se almeja o ressarcimento do erário da quantia que dolosamente deixou de ser recolhida, toda omissão de receita, nos moldes referidos, por satisfazer a conduta típica descrita na norma penal incriminadora, é crime de ação penal pública incondicionada, cabendo ao Ministério Público dar início à persecução criminal, após reunir indícios da materialidade do delito e de sua autoria, via de regra fornecidos pelo órgão estatal competente, e que podem se constituir no auto circunstanciado de infração, termo de fiscalização, depoimentos dos agentes fiscais, etc.

Mesmo que se trate de uma sociedade comercial, os seus representantes que tinham algum poder de administração ou gerência e por isso lhes cabia a obrigação tributária, respondem penalmente pela omissão de receita, não ocorrendo o mesmo com sócios sem poder gerencial do negócio, como os cotistas ou acionários.

Em sede de processos-crime para a apuração de tais infrações é comum que os comerciantes aleguem genericamente as dificuldades financeiras do comércio ou, em especial, o setor ligado à sua atividade comercial, dizendo que foram praticamente forçados ao não recolhimento do tributo pelas dificuldades financeiras por que passava.

Esse argumento visa à tese de que a sua omissão dolosa – não recolhimento do imposto – estaria acobertada pela excludente de ilicitude do estado de necessidade (art. 23, I, e art. 24, ambos do Código Penal). É claro que dificuldades financeiras cabalmente demonstradas podem se constituir em estado de necessidade que levem a firma recolhedora à sonegação ou, como amenizam os praticantes, à inadimplência.

Alguns julgados dos tribunais pátrios entendem que não é o caso de estado de necessidade, mas de inexigibilidade de conduta diversa, circunstância que exclui a punibilidade. De qualquer forma, tanto o entendimento supra quanto esse resultam na absolvição do réu (art. 386, V, do Código de Processo Penal) e pedem prova plena desses problemas financeiros, a qual se constitui em ônus da defesa que a alega.

Simples afirmações genéricas acerca dos problemas econômicos do nosso país ou da área de comércio ou prestação de serviços da firma que se omitiu em recolher o tributo não geram a prova suficiente para o reconhecimento do estado de necessidade. Há a necessidade da trazida de testemunhas, balancetes que comprovem essa situação, demonstrativos de bens dos acusados de sonegação e, lembrando o que assevera o mestre tributarista Hugo de Brito Machado, prova de que os empresários a quem compete o recolhimento do tributo “depende da empresa para sobreviver, por isto mesmo equiparáveis ao do tradicional exemplo do furto para matar a fome” (MACHADO, Hugo de Brito. Algumas questões relativas aos Crimes Contra a Ordem Tributária. Disponível na Internet: . Acesso em 03. mar. 2003.). Não se admite que o comerciante continue a ter carro de luxo, imóveis e contas bancárias abastardas diante de tais dificuldades financeiras, relegando para segundo plano as suas obrigações tributárias.

Na prática, os bens pessoais do comerciante restam intocáveis e não se preocupa ele com sacrificar o seu comércio, pois abre outro, em seu próprio nome ou com um “testa-de-ferro” ou, como tem se popularizado, um “laranja”, deixando aquele com dívidas tributárias, civis e trabalhistas.

O melhor remédio para a Justiça ir ao encalço daquele sonegador ou devedor, quando se trata de dívidas civis, é a utilização, ainda tímida, do instituto da despersonalização da pessoa jurídica, que persegue os bens particulares daquele comerciante para a quitação das obrigações do seu comércio.

Por fim, lembramos da importância da conscientização da população, desde jovem, de que o tributo pago reverte-se na forma de benfeitorias e serviços estatais para o próprio contribuinte e toda a sociedade e não, como propalam alguns mais injuriosos, para o chefe do Poder Executivo.